domingo, 18 de julho de 2010

SOLETRAR E ESCREVER: Esclarecendo conceitos.


Uma coisa é redigir um texto, com variados graus de respeito aos padrões que regem os diversos gêneros, as regras gramaticais e a utilização de palavras com adequação semântica e ortográfica. Outra coisa é saber soletrar, isto é, transcrever os sons de uma palavra em sua forma escrita. A confusão entre esses dois conjuntos de competências pode levar a efeitos pedagógicos desastrosos.
A capacidade de soletrar é considerada uma habilidade essencial para ascrianças aprenderem a escrever corretamente. Inúmeras pesquisas foram realizadas para compreender as habilidades envolvidas no processo de soletração e para ajudar as crianças a dominarem essas habilidades. Pesquisas sobre escrita e como ensinar a escrever são muito menos desenvolvidas do que pesquisas sobre leitura. Escrever é mais difícil do que ler – é preciso pelo menos um ano adicional de escolaridade para que o nível de escrita ortográfica seja
compatível com as habilidades de leitura de um recém-alfabetizado. As mesmas teorias que se tornaram populares nos anos 60 e 70, já discutidas anteriormente, contribuíram para o desenvolvimento de idéias
imprecisas ou equivocadas sobre o desenvolvimento da escrita e, conseqüentemente, das intervenções pedagógicas mais eficazes para promover esse desenvolvimento.

Considerar a aquisição das competências para escrever como decorrente de um processo natural ou confundir o domínio das competências de soletrar com as necessárias para redigir um texto – ainda que simples – é semelhante a comparar aprender a nadar ou aprender a andar de bicicleta com nadar ou andar de bicicleta. Outra confusão corrente em muitos ambientes pedagógicos se dá entre a capacidade de contar uma história, conceber um texto, ou mesmo ditá-lo para uma pessoa e a capacidade de redigi-lo por conta própria. Redigir por conta própria requer um conjunto muito mais elaborado de competências – inclusive a capacidade de escrever. Uma outra confusão, ainda, refere-se à chamada escrita espontânea ou emergente – que muitas crianças exibem na medida em que vão interagindo com a escrita. Esses tipos de escrita se revelam importantes instrumentos para diagnosticar o entendimento da criança sobre as relações entre sons e letras e sua forma de representar palavras – mas não como instrumentos para promover o ensino eficaz da escrita, em nenhum de seus dois sentidos.

 Escrever – no sentido mais elementar – refere-se à capacidade de codificar sons usando os sinais gráficos correspondentes – os morfemas. Somente nos estágios mais avançados da alfabetização é possível escrever uma palavra com base no reconhecimento preciso de sua representação ortográfica sem pensar sobre os fonemas. É no desenvolvimento dessa capacidade mais elementar que deve recair a ênfase – não a exclusividad – do ensino da escrita num programa de alfabetização. O contexto adequado para esse ensino não são os gêneros literários variados e o entendimento do seus usos sociais: este é o objetivo último de aprender a escrever, mas não é o objeto nem deve se confundir com o processo inicial de preparar o indivíduo para escrever. Num processo de alfabetização, primeiro é preciso aprender a
escrever as palavras de acordo aplicando critérios de transcrição fonológica dentro dos padrões ortográficos (soletrar), para em outro momento. poder escrever no sentido de compor textos, ainda que simples. A limitação do processo de soletrar não deve impedir o desenvolvimento de competências
relevantes para essa fase posterior – mas trata-se de objetivos e processos que requerem diferentes estratégias pedagógicas.



Escrita emergente e fases do desenvolvimento da escrita

Entre os 3 e os 4 anos de idade, as crianças tendem a começar a identificar sons mais salientes da fala. Crianças que vivem em ambientes letrados e com acesso a artefatos como lápis, giz, papel etc. começam a rabiscar, desenhar seqüências de letras aleatórias ou fazer desenhos em forma de letras. Por volta dos 4 anos, essas crianças começam a representar alguns sons usando a escrita espontânea ou inventada. Também começam a usar brinquedos e outros objetos para representar sons da fala. Esse desenvolvimento ou, mais
precisamente, esse envolvimento da criança com a escrita não é natural – depende da existência de estímulos e condições no ambiente. As crianças que não tiveram estímulos adequados e condições para brincar com a escrita e tentar escrever manifestam posteriormente dificuldades para aprender a escrever.

Gombert (2003) distingue três fases sucessivas no desenvolvimento da escrita, que ele nem considera universais nem naturais, mas que tendem a ocorrer em crianças que vivem em ambientes letrados estimulantes:

1) Uma fase de representação grafo-motora – em que as crianças reconhecem alguns traços característicos da escrita como diferentes dos desenhos.

2) Uma fase de representação grafo-semântica, quando a criança relaciona o tamanho do conceito com o tamanho de coisas a serem escritas, independentemente do tamanho fonológico de cada palavra (a representação da palavra PAI ocupa mais espaço do que a palavra bebezinho).

3) Uma fase de representação grafo-fonológica – em que algumas crianças compreendem que a escrita corresponde aos sons da linguagem e que os mesmos sons se escrevem da mesma maneira. Algumas crianças começam, inclusive, a identificar e tentar usar letras em suas escritas.

Esses desenvolvimentos preliminares da escrita e dos conceitos a ela associados contribuem, mas não asseguram que a criança irá aprender a escrever. Para aprender a escrever, no sentido definido anteriormente, a criança precisa aprender a decompor palavras, ou seja, segmentos orais ou fonemas nos
seus correspondentes segmentos escritos ou grafemas. A evidência científica acumulada nos últimos anos e revista especialmente em Adams (1990) e no National Reading Panel (1988) demonstra que a capacidade de analisar (decompor) palavras em sons se baseia na sensibilidade fonológica preexistente, mas depende, fundamentalmente, do desenvolvimento da consciência fonêmica associada ao processo de aprender a ler. Essa evidência também indica que a capacidade para isolar fonemas não é inata.

No entanto não basta aprender as correspondências entre fonemas e grafemas para aprender a escrever corretamente – existem irregularidades e exceções que precisam ser reconhecidas pela via direta (lexical) ou indireta (fonológica) quando a distância entre os sons e suas representações torna-se muito arbitrária, como em diversas palavras da Língua Francesa, por exemplo. A aprendizagem implícita (Gombert) também desempenha um importante papel no domínio da escrita. A exposição repetida às regularidades do código
escrito ajuda a desenvolver o conhecimento implícito a respeito de várias regras de posição e de contexto relativas às correspondências grafema-fonema. A aprendizagem implícita, porém, não diminui a importância da aprendizagem consciente das relações e correspondências ortográficas e morfológicas. O ensino, e especialmente o ensino dos códigos e regras de conversão fonemagrafema, desempenha um papel fundamental na aprendizagem da escrita, por duas razões principais. Primeiro, permite às crianças utilizar essas regras intencionalmente, quando necessário. Segundo, ajudam a acelerar a aprendizagem implícita. A aprendizagem implícita e a explícita são complementares: a aprendizagem implícita é responsável pela leitura automática, mas a aprendizagem explícita, consciente, é essencial para permitir à criança tomar decisões quando está lendo ou escrevendo (Gombert, 2003).



Relações entre leitura e escrita
A capacidade de uma criança escrever corretamente uma palavra varia muito entre diferentes línguas. De um lado, isso sugere que existe uma especificidade associada ao código alfabético particular de cada língua, e essa especificidade refere-se ao grau de maior ou menor correspondência entre grafemas e fonemas. Se o ensino da escrita fosse baseado precípua ou unicamente na aprendizagem dos seus usos sociais, essas diferenças não teriam razão de ser.

Mas existe um aspecto cognitivo mais importante. Ler uma palavra requer a capacidade de reconhecimento, que, por sua vez, requer a capacidade de discriminação. Quando há pouca ou nenhuma similaridade de uma palavra com a palavra-alvo, o reconhecimento torna-se mais fácil, mesmo quando o leitor não tem um conhecimento preciso da palavra (Eysenk & Keane, 1990). Mas, quando a escrita de uma palavra envolve a lembrança de sua forma, e não apenas o reconhecimento, para soletrar a palavra a criança precisa acessar a representação ortográfica da palavra de forma detalhada. Isso ocorre tanto com adultos, com pessoas que lêem e escrevem com fluência razoável, quanto com crianças. Testes realizados com alunos de Língua Inglesa, ao final da 1ª série,encontraram correlações de 72% para leitura correta, mas de apenas 55% para escrita correta de palavras regulares. As médias dos alunos que receberam instrução fônica específica foram 20% superiores em leitura e escrita às dos demais alunos (Forman et alia,1991).

As características do código ortográfico explicam a dificuldade maior – e, conseqüentemente, o esforço e tempo maior – necessários para o domínio ortográfico em crianças de diferentes línguas. No caso da leitura em Português e em Francês, por exemplo, a criança precisa de um número relativamente limitado de regras para ler e soletrar, e as irregularidades grafo-fonológicas são raras ou inexistentes. Nessas mesmas línguas, no entanto, a escrita é muito mais complexa e apresenta muito mais irregularidades (Scliar-Cabral, 2003). Esse assunto será retomado em maior profundidade mais adiante.



A leitura é um importante instrumento para ajudar a criança a consolidar o conhecimento ortográfico necessário para escrever corretamente. Diversos estudos demonstram que, sobretudo a partir da 2ª série escolar, exposições repetidas para decodificar uma mesma palavra apresentada em diferentes contextos de leitura levam o aluno a criar uma representação ortográfica. Geralmente são necessárias cerca de quatro a cinco exposições para adquirir fluência – que é exatamente a capacidade de identificação automática. Essas
pesquisas também demonstram que ler as mesmas palavras, que o aluno é capaz de decodificar, é mais produtivo do que ler pseudo-homófonos, isto é, palavras com pronúncia idêntica, mas escrita diferente (Ehri e Saltmarsh, 1995, Manis, 1985, Reitsma, 1983 e 1989). Na Língua Portuguesa, por exemplo, para poder soletrar corretamente a palavra caça o aluno precisa saber que a terceira
letra é um ç e não ss. A constituição das representações ortográficas pode se dar por meio da leitura de textos variados (Share 1999), de exposições múltiplas a palavras que o aluno originalmente é capaz de decodificar. Daí a importânciada adequação dos textos de leitura. Esses estudos demonstram que a leitura
freqüente é fundamental para aprender a escrever corretamente, mas também que é fundamental que o aluno aprenda a ler com autonomia para poder aprender a partir do que lê.


A escrita correta também depende da aprendizagem de aspectos mais básicos, como a caligrafia e a “mecânica” da língua, isto é, os aspectos relacionados com a pontuação, maiúsculas e minúsculas e, no caso do Português, da acentuação. A caligrafia, por exemplo, é um aspecto fundamental para desenvolver tanto a fluência na escrita – o que libera a atenção da criança para o conteúdo – quanto para assegurar a legibilidade – condição básica para sua eficácia (Stempel-Mathey, L. & Wolff, B.J.,2000). Tom Gorman e Greg Brooks (1996) observam que aprender a escrever as letras do alfabeto corretamente envolve observação, controle e coordenação manual. As crianças são expostas a diferentes tipos e tamanhos de letras. O uso de formas particulares de escrita – especialmente a escrita cursiva – requer muita prática, o que envolve a aprendizagem de diversos conceitos que governam o sistema da escrita, e que foram descritos por Sassoon (1990):

 1) Direção – da esquerda para a direita, de cima para baixo (no caso do alfabeto latino).

2) Movimento – as letras têm movimentos corretos, que definem onde começar e terminar cada uma.

3) Altura – há diferenças de altura entre letras.

4) Discriminação – há letras muito parecidas, que são a imagem de outras (bd-, m-w-, n-u, p-q) e que precisam ser ensinadas com cuidado especial.

5) Letras maiúsculas e minúsculas são usadas de forma diferente.

6) Espaços devem ser usados de forma consistente entre letras e palavras.
 
 
 
FONTE DE PESQUISA: http://www.cercimor.pt/maria/alfabetizacaoinfantil.pdf

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